Aviso: o texto inclui referências à esperança de vida de pessoas com cancro da mama metastático.
Saí da consulta feliz e ansiosa.
Feliz, porque pela primeira vez a médica usou as palavras «sem evidência de doença ativa», palavras que carregam uma ligeireza extraordinária. Carregam tempo, que é mais leve que o hidrogénio.
Ansiosa, com um aperto no fundo da garganta, porque aquelas palavras afastam o abismo, mas não sei quantos passos.
Penso na minha mãe, como tantas vezes acontece desde que comecei neste caminho. Em 1989, foi diagnosticada com cancro da mama e, 14 anos depois, com metástases nos ossos; morreu 8 anos depois. Faço as contas, somo e subtraio; os números enrolam-se uns nos outros. Comparo-os com os meus, mais uma vez. Em 2016, fui diagnosticada com cancro da mama e, 7 anos depois, com metástases nos ossos. Voltar a estas contas é como passar por um acidente e abrandar para ver o que se passa: não serve de nada e cria trânsito.
Conto os passos, uma e outra vez. E agora?
Esta pergunta, como uma ameaça, cria a urgência de saber o que fazer com o tempo que me resta. O que vais fazer agora? O que vou fazer agora? Parar de trabalhar? Viajar? Publicar o meu manuscrito?
O que fazer quando te dizem que tens uma doença incurável, quando é provável que não chegues à idade da reforma, mas também é possível que dures muitos anos com uma qualidade de vida decente?
Sinto-me num limbo, mas estou bem acompanhada - toda a humanidade vive aqui: ninguém sabe a hora da sua morte. Mas, se antes conseguia viver sem dar conta do abismo, agora sinto a sua presença em cada passo. A cortina abriu-se.
Há dois anos tentei fazer uma bucket list, sem grande entusiasmo. Tinha feito uma lista, anos antes, quando tirei um ano de licença sem vencimento — uma decisão motivada pelo primeiro diagnóstico de cancro da mama e outros problemas de saúde, graves, que se seguiram.
Nessa altura fiz uma lista de tudo que podia fazer nesse ano de pausa e deixei a minha imaginação voar, sem medos: imaginei-me a ir fazer voluntariado numa quinta comunitária do outro lado do mundo e a viver como uma eremita numa cabana junto a um lago. Em todas as fantasias havia um tema comum: queria escrever o meu livro e encontrar uma forma de tornar a escrita, as palavras, uma parte central da minha vida, do meu futuro.
Nesse ano não trabalhei numa quinta comunitária do outro lado do mundo, mas fiz pela primeira vez voluntariado num mosteiro budista não muito longe de casa. Não cheguei a encontrar a cabana ao pé do lago, mas encontrei muitos lugares para escrever, junto a rios e perto do mar. Participei num curso de revisão de textos. Consegui acabar o meu livro. Comecei a trabalhar como escritora-fantasma. Participei em dois festivais literários, incluindo o Correntes d’Escritas, na Póvoa do Varzim, onde o escritor Luís Sepúlveda teve os primeiros sintomas da Covid-19 que levou à sua morte e depois do qual fiquei em quarentena, quando ainda pouco se percebia o que estava a acontecer no mundo. Mesmo interrompida pela pandemia, o principal objetivo da minha «sabática» foi alcançado: as palavras são agora uma parte central da minha vida.
O novo rótulo, «sem evidência de doença ativa», inquietou-me, e é estranho quando me sinto apreensiva com boas notícias. A cortina mantém-se aberta, o abismo continua lá, mas o espaço dilatou-se. E agora?
A resposta imediata não é uma bucket list, mas algo mais subtil. Fantasio com cautela, não por medo de falhar, mas por saber que o tempo é precioso, que a distância pode encurtar a qualquer momento.
O que podia ser um sentimento de urgência torna-se um filtro onde ficam presas algumas banalidades e por onde passam outras. Quero paz, amor e saúde. Quero encontrar o silêncio e o espaço para sentir as coisas como se fosse pela primeira vez. Quero sentir o meu corpo como parte de mim e não como um problema que preciso de resolver. Quero abraçar pessoas e rir até chorar. Quero saborear ideias e discuti-las, aprofundá-las e fascinar-me com a sabedoria dos outros. Quero emocionar-me com histórias e com a beleza das coisas.
Não fiz uma bucket list, mas tenho pensado no meu legado. Que paisagens são transformadas pela minha passagem? O que deixo? O tempo passado com as pessoas que amo? As palavras que vocês leem, as ideias que lanço ao universo? Algumas fotografias que conseguiram capturar a luz no momento certo?
Penso no meu legado, mas não me quedo nele. Mais tarde ou mais cedo, todos seremos esquecidos. As paisagens não permanecem. Somos como a ave que voa, rasante no lago, e agita as águas. Podemos não deixar pegadas, mas continuamos a querer voar.
Nunca sabemos a quantos passos está o abismo — estamos todos a tropeçar no escuro. Mas quando começamos a sentir o chão mais firme debaixo dos nossos pés, o universo nos puxa-nos e ganhamos espaço para respirar, para sonhar.
A pergunta persiste: e agora? O que vais fazer com o tempo que te resta?