O texto sobre o Alberto Caeiro fez-me voltar a este paradoxo. É um tema que parece ser isto ou aquilo e acaba sempre por ser isto e aquilo, deixando-me dividida.
Ao longo do dia, a minha atenção é puxada e empurrada, tanto volta no tempo para reviver um momento como avança por ideias do que podia ser. Passeia-se incessantemente pela lista de projetos por acabar e das tarefas por fazer. Por vezes, aparece como uma voz que observa o que estou a pensar (ou a sentir), e investiga o como, o porquê e o para quê. É uma voz curiosa, mas crÃtica.
Essa voz surge frequentemente quando entro em piloto automático e obriga-me a prestar atenção, a reparar no que está à minha frente, a sentir o meu corpo em movimento. Às vezes pergunto-me, quanto tempo passou sem que eu desse conta? Quanto tempo passa na minha vida sem que alguma coisa puxe a minha atenção para o momento presente?
Dizem que é importante viver o aqui e o agora, que só existe o presente, que o passado já foi e o futuro ainda não aconteceu. E se eu ficar aqui, agora, quieta nesta mesa de esplanada, a pensar em tudo isto? A minha atenção não está focada no pombo que passeia por entre as mesas, nem nos amigos sentados na relva ao sol, está virada para dentro, viaja pelas possibilidades do que vai ser este texto.
Será que viver no momento é fazer o texto fluir, palavra após palavra, sem planear o que digo a seguir? Será como os geradores de texto que calculam a probabilidade da próxima palavra a partir de conteúdos existentes? E se o texto flui a partir de qualquer coisa que está na minha cabeça, será isso viver no passado? E se a minha mente sabe para onde vai, mesmo que inconscientemente, e as palavras vão pavimentando esse caminho? Não será isso viver no futuro?
Muitas vezes escrevo a partir de uma pergunta, à procura de uma resposta. Sou lenta a pensar; preciso de tempo para digerir informação e relacionar as coisas. Quanto mais tempo passo a escrever e reescrever um texto, mais vou descascando as camadas superficiais e revelando o que se esconde no meio do medo, da vergonha, da culpa e do que acho que sei sobre as coisas.
Nessa escrita a visão ainda não está clara, mas o desenho vai surgindo, vai-se construindo sobre uma inquietação, uma personagem ou uma situação concreta.Â
O único livro de ficção que escrevi cresceu assim: comecei com um esqueleto escrito à mão, para dar mais tempo à s personagens para fazerem o que tinham de fazer, e quando cheguei ao fim, voltei ao princÃpio e reescrevi, acrescentando camada após camada até que disse: acabei.
Mas acontece ter de parar, elevar-me e perscrutar o horizonte. Isso acontece antes de começar a escrever e a meio do processo, muitas vezes entre reescritas. Do alto do mastro consigo ter a visão de conjunto, perceber o que precisa de mudar, o que falta e o que está a mais. É do alto que sigo cada ideia e cada personagem ao longo do texto, que sinto as suas vozes e o seu ritmo.
Escrever é recuar e avançar no tempo, real ou imaginado, e é parar no agora e deixá-lo encher-se de palavras e ideias. Assim nas palavras, como na vida. Talvez.Â
Volto à minha mesa na esplanada e sei que este não é um momento que vai ficar guardado na minha memória. Ou será que vai? Se ficar, não é pelo sÃtio ou pela limonada; se me lembrar, é por causa destas palavras, desta busca e da dúvida, que persiste, sobre como parar no agora e conseguir saborear esse silêncio por entre o ruÃdo de tudo o que existe.Â
Viver o momento talvez não seja querer formar memórias perfeitas, dignas do instagram. Talvez seja reconhecer e guiar, a cada instante, o foco da nossa atenção. Talvez seja encarar aquela voz crÃtica e curiosa, e dar-lhe tempo para aprender a observar e reagir sem julgar, deixando fluir, mas com uma visão clara de um propósito maior.