O meu professor de filosofia do décimo ano tratava-nos como adultos. Era um homem desalinhado, alto, magro e com o cabelo grisalho. Corria o rumor de que tinha sido professor numa universidade e que tinha passado seis anos numa ilha do Brasil a escrever.
Estranhámos a insólita figura, e ainda mais quando ele ignorou o manual escolar oficial e começou a ensinar usando o livro Poemas de Alberto Caeiro.
Nunca tinha lido assim. Eviscerávamos cada poema, removendo os órgãos que atestavam a filosofia do poeta. Ler deixou de ser uma coisa que acontecia só na minha cabeça, e passou a ser algo que me fazia viajar até à cabeça do autor. O tempo passado em cada palavra tornava o texto mais real, em vez de lhe tirar o significado e a beleza, como temia (faço parte da geração que viu o Robin Williams a mandar arrancar as páginas de um livro que tentava analisar poesia).
Imaginava Alberto Caeiro alto, magro e com o cabelo grisalho, como o professor, a escrever num quarto despojado, numa secretária em frente a uma janela com vista para um campo cheio de flores de primavera e com o rio ao fundo. No momento em que escrevo isto apercebo-me que esta imagem me persegue desde então: é o lugar que imagino quando me pedem para pensar numa coisa boa, seja um enfermeiro, antes da anestesia, seja uma meditação guiada.
Os poemas de Alberto Caeiro pareciam escritos numa língua diferente da que era falada à minha volta, mas havia algo em mim que a reconhecia.
Aquela senhora tem um piano
Que é agradável mas não é o correr dos rios
Nem o murmúrio que as árvores fazem...
Para que é preciso ter um piano?
O melhor é ter ouvidos
E amar a Natureza.
Os textos falavam de uma vida mais simples, muito diferente da que eu vivia aos quinze anos, e tornavam-na credível. Alguém tinha publicado aquele livro e alguém o tinha escolhido para ensinar numa escola. Era possível pensar assim, era possível ser assim. Era possível apreciar o murmúrio das árvores, e isso era tão válido como apreciar o som de um piano.
No outro dia lembrei-me destes poemas ao encontrar uma publicação no reddit em que alguém pedia exemplos de filmes que retratassem uma vida simples. Ao ver as sugestões, tive uma revelação: eram quase todos filmes de que gostei muito (o que é muito raro no reddit). São filmes em que nada parece acontecer, pelo menos à superfície. Um bom exemplo é o último filme do Wim Wenders, Perfect Days.
O meu fascínio por estes poemas e por estes filmes e a admiração que sinto sempre que encontro pessoas que vivem uma vida fora da rotina casa - trabalho - casa, dizem qualquer coisa sobre mim. E se, aos quinze anos, me parecia impossível viver de outra forma, agora olho para trás e vejo que, devagarinho, tenho-me libertado de algumas «certezas».
Quando era miúda sentia que tudo era possível, desde que acabasse o secundário, fizesse a faculdade e encontrasse um emprego interessante, em que o meu trabalho fosse reconhecido e onde pudesse deixar um legado útil para a sociedade. Não tinha plano B.
O medo de ser diferente do que era ditado para a minha geração dissolveu-se sem que eu desse conta e, com o primeiro diagnóstico de cancro de mama, começou um movimento de mudança que simplificou a minha vida. Não vivo numa cabana em frente a um rio, mas sinto cada vez mais vontade de apreciar o que tenho.
Ainda oiço uma voz a perguntar-me se este é um movimento para dentro da minha zona de conforto, mas (normalmente) a resposta é negativa - sinto que estou a viver o plano B.
Também oiço uma voz a perguntar-me se não «devia» querer mais. É suposto querermos ser reconhecidos pelo nosso trabalho, ou pelo menos pela pessoa que somos. É suposto querermos deixar algo que marque a nossa passagem, deixar memórias em quem fica, certo?
Diz o Alberto:
Antes o voo da ave, que passa e não deixa rasto,
Que a passagem do animal, que fica lembrada no chão.
A ave passa e esquece, e assim deve ser.
O animal, onde já não está e por isso de nada serve,
Mostra que já esteve, o que não serve para nada. (...)
Passar por esta vida de passo leve, sem deixar rasto, deixa-me dividida. É verdade que estamos aqui de passagem, cada um de nós e a humanidade, e por isso de nada serve agarrarmo-nos às coisas e às pessoas. O planeta continuará a sua viagem à volta do sol muito depois de o último ser humano desaparecer. Por outro lado, há muita beleza nesta coisa de sermos humanos e de conseguirmos pensar sobre as coisas, de lhes dar significado, de criar laços e de sermos capazes de nos lembrarmos de quem já cá não está.
O poeta não iria aprovar este texto - há demasiada introspeção. Ele diz «As coisas não têm significado: têm existência. As coisas são o único sentido oculto das coisas». Mas uma vida mais simples no exterior parece dar mais espaço e tempo para que as ideias floresçam, e - para já - sinto que há beleza nas coisas em si, mas também há beleza em procurar o seu significado.
Poemas de O guardador de ovelhas, de Alberto Caeiro, um dos heterónimos de Fernando Pessoa.