O monge deixou-me à porta do edifício. Peguei na mochila e fui conhecer o que ia ser o meu quarto nos próximos dias. As escadas levaram-me a um torreão, um primeiro andar composto por um quarto pequeno com duas camas e uma casa de banho. Da janela viam-se os pinheiros e o pequeno bosque de carvalhos que esconde as casinhas onde vivem os monges.
Ainda sei como isto se faz?
Saí para explorar os trilhos e para fazer um teste antes da meditação da noite; queria perceber se iria conseguir meditar sentada de pernas cruzadas. Passaram dois anos desde a última vez que meditei de pernas cruzadas mais de 15 minutos, e parece ter sido há décadas: estou em pior forma, e ainda a semana passada, a reumatologista que acompanha a minha espondilartrite confirmou o que já era óbvio para mim: que tenho novas inflamações na zona lateral das ancas.
Entrei na sala de meditação que fica fora do edifício principal, uma sala pequena, forrada a madeira, e com um cheiro familiar a incenso. Tirei um tapete e uma almofada e sentei-me. Senti o silêncio a chegar — o meu corpo conhece esta postura, e sabe que é o momento de ficar quieto.
Algum tempo passou, não sei dizer quanto, até que o cansaço de uma noite muito mal dormida começou a empurrar o meu corpo para a frente, e foi como se, com a mudança de postura, alguém me tivesse espetado uma faca na anca direita. Endireitei-me, respirei e tentei de novo, uma e outra vez, mas o silêncio quebrou-se.
Já não sei fazer isto
Ainda assim, quando me sentei para a meditação da noite, estava esperançosa. Tinha dormido uma pequena sesta, para prevenir cabeceamentos durante a prática, e estava pronta.
A esperança não durou muito; a dor voltou pouco depois. Eu tentei. Respirei para as costas, como se isso libertasse o peso sobre as pernas. Tentei focar a atenção nas partes do corpo que não doíam, nas mãos que estavam descontraídas sobre o colo. Mas meditar com dor é como tentar ouvir o silêncio com alguém a gritar-te ao ouvido.
A certa altura, aquilo já não era meditação, era uma luta comigo mesma. Desisti e estiquei as pernas, tentando não fazer barulho enquanto só me apetecia gritar da dor. Ainda fiquei menos zen quando voltei a cruzar as pernas, e nem cinco minutos depois a meditação terminou. Só precisava de ter aguentado mais um bocadinho.
Aguentar (só mais um bocadinho)
No segundo dia, a primeira meditação era às 5h. Entrei na sala onde os monges e dois leigos já estavam sentados, tirei um tapete e uma almofada, e sentei-me de pernas cruzadas. Tinha de tentar mais uma vez, mas mal me sentei, soube que ia passar pelo mesmo.
Mas aguentei, usando as técnicas conhecidas. E depois aguentei mais um bocadinho. Não queria que acontecesse como no dia anterior, não queria esticar as pernas, dando parte de fraca, para depois a coisa acabar logo ali.
Tentei, mas não consegui. Quando não consegui mais suportar a dor na anca, desfiz as pernas, e foi como tentar desfazer um pretzel sem o partir. Inclinei-me para a esquerda para libertar a perna direita, que estendi à minha frente, deixando o sangue voltar a circular.
Esperei um bocado e voltei a cruzar as pernas, e a dor voltou. Tentei focar a atenção na respiração, mas a certa altura dei a meditação como perdida. Só queria que o gongo soasse, que alguém pusesse fim àquele tormento. Abri os olhos e vi pessoas sentadas no chão, de costas super direitas, em silêncio absoluto. Parecia ser a única pessoa a contar os minutos para aquilo acabar.
Ainda assim pensei, faz parte, é um processo, uma aprendizagem, vai sempre haver meditações más; pensei que não há meditações más, mas sem grande convicção. Mas se a dor era tão intensa que não conseguia meditar, para quê estar ali a sofrer?
Percebi que se quisesse meditar, ia ter de me sentar numa cadeira, e mal esse pensamento apareceu, senti a resistência: não queria dar parte de fraca; e no mesmo microssegundo percebi ser isso mesmo que o meu ego precisava: assumir que não era capaz e, na próxima vez que entrar naquela sala, escolher uma cadeira, e sentar-me nela.
Mas será mesmo assim? O universo responde
Depois do pequeno-almoço, a minha tarefa foi arrancar as ervas que crescem na caleira de drenagem do caminho principal, feita de calçada. Claro que não disse que talvez aquela tarefa não fosse ideal para mim, claro que achei que ia conseguir — e consegui, com dor.
Estão a ver o padrão? Eu não tinha visto até escrever estas palavras. Estive a sofrer durante duas horas com as costas a arder, para não dar parte de fraca, outra vez, para não ter de admitir a mim própria e ao mundo que não consigo fazer uma tarefa tão simples como arrancar ervas.
Mas a ideia de que este era o tema do dia não ficou por aqui. Depois de almoço cabe-nos lavar a loiça e ajudar a arrumar a cozinha. E quem é que se pôs logo no lavatório a lavar a loiça de toda a gente e as travessas e taças da comida? Pois… As costas a arder e eu a respirar fundo, a fazer força na barriga, a usar todos os truques para não ter de pedir a alguém que me substituísse.
Reconhecer o padrão
Na vez seguinte que entrei na sala de meditação, escolhi uma cadeira e sentei-me nela. E no dia seguinte, quando distribuíam as tarefas, disse que as minhas costas se tinham ressentido no dia anterior e em vez de ir para o jardim, fui cozinhar.
Sinto que este tema me segue desde os dezasseis anos, quando passei um verão em dor por causa de duas hérnias discais que ninguém desconfiava existirem e tive de ser operada a uma delas. Desde então que me divido entre querer fazer mais e saber que sou capaz, e o medo de fazer qualquer coisa que vai pôr em causa a minha mobilidade, como aconteceu tantas vezes ao longo dos anos (a.k.a. espondilartrite). E este medo às vezes projeta-se numa sensibilidade maior ao tema «ser capaz».
E talvez não veja o padrão porque nem sempre ele é tão óbvio. A dor pode ser uma coisa boa, como quando vou ao ginásio: sofro durante uma hora para depois me sentir mais forte e flexível. Eu senti-me mais forte depois daquelas duas horas, senti que tinha conseguido, mesmo tendo ficado com dores nas costas durante alguns dias. Tentar ir além da zona de conforto, do que pensas ser possível, é uma, talvez a única, forma de crescermos.
Por outro lado, sei que este medo foi ganhando novas camadas com os anos, e sinto que ganhou uma nova camada no último ano, com o diagnóstico de metástases nos ossos, a menopausa induzida e a nova medicação. Por isso, aproveitei estar perto de monges budistas (no Mosteiro Sumedharama, na Ericeira) para lhes perguntar como lidar com a dor.
A primeira flecha é a dor, a segunda é a aversão à dor
Esta ideia surgiu primeiro num livro que comecei a ler na biblioteca do mosteiro, e depois nas conversas que tive com os monges. No livro, um monge relata como lidou com os primeiros anos de isolamento na Índia:
Nessa altura da minha vida a minha convicção reduziu-se a uma ideia: qualquer sofrimento é provocado pela mente, e o caminho para acabar com ele tem de passar por chegar à sua raiz. Em vez de pensar em diferentes sítios para onde ir, apercebi-me que tinha de lidar com a inquietação. Em vez de murmurar sobre a falta de coisas interessantes para fazer, o calor sufocante, a má alimentação e os estados de espírito horríveis, percebi que o cerne da questão, embora difícil de aceitar, era a minha própria aversão. Por vezes, reconhecia que estava a resistir às coisas, e então relaxava, deixava-me ir.
Um pensamento radical é que o sofrimento não vem da dor (e que a dor é neutra, como o respirar, ou a febre), mas da nossa aversão à dor, da angústia que torna tudo pior. O sofrimento vem da aflição interior: Não quero isto. Outra vez? Porquê eu? Será que vai durar para sempre? Será que vai piorar?
E se a aversão à dor causa mais sofrimento do que a própria dor, podemos diminuir esse sofrimento se conseguirmos aceitá-la. Encontrar, na dor, essa paz de espírito a que os budistas chamam equanimidade é um processo que envolve meditação, atenção e compaixão e que pode incluir:
Explorar a dor, os seus limites, o tipo de dor, a forma como se movimenta no corpo, e perceber que esse objeto que a nossa mente fixa como «a dor» é na realidade algo fluído e impermanente.
Substituir o desespero por amor, imaginando um objeto de amor incondicional, como um bebé ou um cachorro, sabendo que a mente não consegue manter um estado negativo e positivo em simultâneo. Também podemos falar com a nossa dor com o carinho que falaríamos a um amigo que estivesse a sofrer.
Dar-lhe um significado e focar nas coisas positivas que a dor traz (que pessoa seria hoje se o meu corpo não tivesse falhado tantas vezes?).
E isto aplica-se à dor, mas também a outros estados de desconforto.
fala sabiamente da ansiedade, em When Anxiety Knocks, Ask For Some ID:Aceitar o que é não é o mesmo que apoiar a injustiça ou o sofrimento; é apenas ver os factos como eles são neste momento, sem a agitação interior que não ajuda realmente a melhorar as coisas.
A distinção entre o que é e o que sentimos e pensamos sobre o que é requer atenção, que é o contrário do que tendo a fazer quando as coisas não correm de acordo com as minhas expectativas. Há momentos em que consigo parar e respirar, mas mais facilmente procuro formas de me distrair e de me anestesiar, para que o desconforto passe rapidamente.
Agora a sugestão é ficar/focar no desconforto, estudá-lo, aceitá-lo, e crescer com ele, deixando ir o que não me serve, treinando a mente para que não crie esta camada de angústia e medo que torna tudo pior. E para isso, tenho de identificar os momentos em que digo para mim própria «vou aguentar» e perceber se o desafio é gerível, e se me pode fazer crescer, ou se preciso de aceitar que não é, aceitar que não consigo, e encontrar outras soluções.
No início do trilho que leva ao pequeno bosque de carvalhos há um espanta-espíritos enorme pendurado numa árvore, cujo som chega a todos os cantos da propriedade. Por baixo há um banco improvisado, com um tronco e uma tábua, onde me sentei várias vezes nos dias que passei naquele lugar. Ali o vento sopra do vale e percorre as árvores e quando chega ao espanta-espíritos cria uma cacofonia parecida com o que o meu cérebro soa num dia acelerado. Mas quando o vento amaina, o som transforma-se em algo mais rítmico e melodioso, e o som vai-se extinguindo até chegar o silêncio.
Quando a minha estadia acabou, trouxe comigo o riso, o cuidado e a sabedoria dos monges e o sentido de serviço e a alegria dos outros leigos. Trouxe comigo aquele espanta-espíritos, o vento nas árvores, e o silêncio, que espero continuar a ouvir quando precisar de me lembrar de prestar atenção.
(Há uma excelente resposta sobre como lidar com a dor nos primeiros seis minutos deste vídeo, pelas palavras do monge Ajahn Jayasaro.)
Sara, thank you so much for mentioning me in your post. I wish I could read it lol. That’s all right; I’m sure it was all good! 😀 (Oops, I jumped the gun; you posted in English as well. I will read your essay now!)