Terminei a chamada e senti-a a espalhar-se pelo meu corpo e a fazer um ninho no meu cérebro. A tristeza apanha-nos de surpresa.Â
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Conseguia senti-la do outro lado. Notava-se nos silêncios, nas palavras meio-ditas, deliberadamente escolhidas. Não era o que eu esperava de uma chamada para a Segurança Social.
(enquanto escrevo isto, Still Loving You, dos Scorpions, começa a tocar, e a música desliza através das ondas)
A minha pergunta era difÃcil: queria saber o que aconteceria ao dinheiro que tenho pago à Segurança Social se nunca chegasse a reformar-me (e tive de dizer as palavras - se morresse antes disso). A Segurança Social, em Portugal, é uma espécie de seguro governamental em que pagamos todos os meses uma percentagem do nosso salário e temos um plano de reforma/pensão e recebemos quando estamos de baixa ou sem trabalho, entre outras coisas. Não é como uma conta pessoal - é um sistema de solidariedade que distribui o dinheiro segundo as necessidades das pessoas; e eu tinha acabado de receber um diagnóstico de cancro metastático e não sabia ao certo quais seriam as minhas necessidades.
A mulher do outro lado da linha foi apanhada de surpresa. Expliquei a situação e fiz a pergunta, tentando manter uma voz neutra, mas com dificuldade em fazer as palavras saÃrem da minha garganta apertada. Tive de parar e respirar algumas vezes para recuperar a voz. Ela foi cautelosa, senti que ela escolhia as palavras. Senti compaixão, mas talvez fosse pena.
Terminei a chamada e não deixei as lágrimas caÃrem. Chorar à s vezes ajuda, à s vezes não. Não queria distrair-me com lágrimas.
Sentia o peso da tristeza no meu corpo, como se a encontrasse pela primeira vez desde o meu diagnóstico.Â
Saà de casa e fui até à praia. Era a primeira semana de verão com chuva e havia poucas pessoas na areia. Sentei-me no meu sÃtio preferido, longe das pessoas, experimentei diferentes playlists e parei nos 90s Metal Classics. Havia Sepultura, Rage Against the Machine e Iron Maiden, e deixei as guitarras preencherem os espaços, tentando concentrar a minha atenção nas ondas à minha frente, mas não conseguia ficar parada. Peguei no meu telemóvel e abri o documento onde tinha carpia as minhas mágoas, e comecei a escrever isto.
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Não gosto da tristeza, mas é uma velha amiga. Sempre fui melancólica por natureza, especialmente quando estou entregue aos meus pensamentos, e desde criança que arranjo tempo para isso. Lembro-me de ter talvez catorze anos e ir até à praia, no inverno, com o meu caderno, ver as ondas e ouvir música no meu walkman.
A tristeza faz-nos abrandar e ouvir. Dá-nos tempo para acrescentar camadas de pensamento às experiências, para avaliar esse processo e para o questionar. Acrescenta profundidade, tingindo a vida com um tom de azul (lembram-se do filme Divertida-Mente?), mas pode obscurecê-la, mantendo-nos em baixo, soturnos e antissociais.
Li The Bell Jar, My Year of Rest and Relaxation, A Little Life e O livro do desassossego, e nenhum destes livros, onde a tristeza e a depressão são um tema, dá pistas sobre como manter o equilÃbrio. Quando sinto a tristeza chegar e não a quero ouvir, suprimo-a através do entorpecimento, fazendo uma tarefa mecânica, lendo ou revendo filmes.
Mas, por vezes, dou-lhe atenção. Nesse dia, na praia, a tristeza recordou-me que há mais na vida do que um dia após o outro, não porque acredito num propósito maior para os seres humanos, mas porque temos a sorte de estarmos vivos neste planeta aleatório e podemos escolher como a aproveitar.
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