Conversas com estranhos
Será que a alegria e a vulnerabilidade andam de mãos dadas?
No ano passado, alguns meses depois do meu diagnóstico, quando ainda estranhava tudo, comprei um bilhete para o festival Being Gathering. Queria algo para almejar, para me desafiar: em um ano, iria estar suficientemente bem para ir acampar durante uma semana. Spoiler: estava, e fui.
O Being não é um festival típico. Não há publicidade, nem pessoas barulhentas a distribuir lixo promocional. A única coisa que te dão no portão é um tubo de plástico com uma tampa - um cinzeiro e, incrivelmente, não há beatas no chão (eu procurei!).
O espaço dá a impressão que alguém dedicou o seu tempo a acolher-nos, mas não em demasia - aqui a terra faz parte do ecossistema e as suas necessidades também são tidas em conta. Há esculturas e instalações loucas e lindas; algumas estão escondidas, e só as encontramos quando vagueamos por entre as árvores, outras estão à vista de todos, com luzes acesas, espetaculares. E depois há as casas de banho de compostagem.
Choveu nos primeiros dias e a terra ficou encharcada e lamacenta, verde e luxuriante. Numa paisagem que costuma ver calor e poeira, acolhi a chuva com gosto, mesmo quando fiquei acordada, sozinha na tenda, a ouvir o barulho da chuva no tecido, a ver os relâmpagos e a fazer a contagem decrescente para o som dos trovões.
Antes da chegada dos weekenders, senti como se estivesse em casa de amigos. As pessoas acenavam com a cabeça quando passavam, por vezes sorriam, mas quase sempre olhavam nos olhos. Se alguém metia conversa, a interação terminava muitas vezes com um abraço.
Neste lugar tudo parece possível, respira-se liberdade. A imagem mais emblemática são as pessoas de todas as idades a nadar nuas no lago. Aqui podemos seguir a corrente ou fazer o que nos apetece, podemos andar nus ou de fato de ski, e ninguém quer saber. Não há ninguém a dizer o que fazer ou o que não fazer, o que é incrível num festival com 3000 pessoas. Parece que esperam - e conseguem - um comportamento civilizado e respeito pelos outros e pela natureza.
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Dancei, cantei, meditei, nadei, descobri coisas novas, partilhei histórias e fui surpreendida pela beleza. Também fiquei surpreendida com a minha resolução: fiz o que queria sem me andar a questionar e foram muito poucas as vezes em que senti que podia não estar a aproveitar todas as atividades disponíveis.
Mesmo nas duas vezes em que me afastei de uma palestra porque o tema era demasiado místico para mim, ouvi com atenção e tentei perceber porque rejeitava aquelas palavras. Em ambas as vezes, decidi que o meu tempo era mais bem empregue a nadar no lago, mas aquilo fez-me pensar: sobre a minha arrogância em relação a ideias que me são estranhas, as ideias mais marginais; sobre como essas ideias podem ser vistas como simbólicas; sobre o que perco por causa da minha disposição mais terra-a-terra (a mesma disposição que é considerada espiritual e idealista quando estou com a outra tribo em casa).
Procurei alegria e encontrei-a ao longo da semana. As gargalhadas e os mimos da filha do meu amigo, as conversas profundas, a água, a beleza para onde quer que olhasse, os lugares de silêncio, o movimento do meu corpo quando fechava os olhos e dançava, o sentimento de pertença enquanto cantava, o prazer de conhecer pessoas diferentes, com vidas tão diversas.
E alguns desses momentos posso partilhá-los convosco: tinha a minha máquina fotográfica com o único objetivo de tirar um dia para falar com pessoas e tirar-lhes uma fotografia. Fiz isto em 2017, a primeira vez que fui ao Being; foi tão bom que decidi voltar a fazê-lo, desta vez mais intencionalmente, e foi um dos pontos altos da semana. Há algo de significativo quando falamos com um estranho e deixamos que ele veja a nossa vulnerabilidade. É como dizer, quando somos crianças, queres brincar comigo? E eles quiseram!
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