As lições de Tom Sawyer sobre manipulação
E como prestar atenção às nossas projeções pode ser terapia gratuita
Lembram-se da cena n’As Aventuras de Tom Sawyer em que a tia Polly manda Tom pintar uma vedação muito comprida? Tom não quer pintar a vedação — prefere ir brincar, mas durante essa tarde descobre que consegue fazer com que outras pessoas pintem por ele.
O método que ele usou confundiu o meu cérebro de adolescente.
Tom inspira-se e começa a pintar como se apreciasse a tarefa, como se aquela vedação fosse a sua obra de arte. Quando um dos rapazes da cidade aparece, pronto a gozar por ele ter de trabalhar, Tom ignora-o e continua a pintar, com pinceladas lentas, e parando para inspecionar a superfície, como um artista. Diz: «Será que um rapaz tem a oportunidade de caiar uma vedação todos os dias?»
O rapaz fica interessado e pergunta-lhe se pode experimentar. Tom começa por dizer que não — é um trabalho delicado — e depois deixa que o rapaz o convença, em troca de uma maçã.
Passado algum tempo, há uma equipa de pessoas a pintar a vedação e Tom observa-as, comendo a maçã. «Tinha descoberto, sem o saber, uma grande lei do comportamento humano: para fazer um homem ou um rapaz cobiçar uma coisa, basta torná-la difícil de obter.»
Esta cena ficou registada na minha memória todos estes anos porque era um bocado desconfortável. E continua a ser. O Tom descobriu uma técnica de vendas muito comum e utilizou-a para conseguir o que queria. Porque é que isso me incomoda?
Normalmente, sinto que as coisas que me deixam desconfortável têm algo a ensinar-me. Jung disse-o bem: «Tudo o que nos irrita nos outros pode levar-nos a uma compreensão de nós próprios». Por isso, quando reparo no desconforto, pergunto-me: O que é que este mal-estar diz sobre mim? O que posso aprender com isto?
Tenho medo de dizer sim, mesmo quando quero dizer não
Quando penso em traumas de infância, penso em incidentes graves e não me reconheço neles. Mas, ao longo dos anos, tenho identificado comportamentos que estão enraizadas na minha educação e um deles é a necessidade de agradar aos outros (people-pleasing), que acredito resultar do tempo que passei a dizer sim porque tinha «medo» de dizer não — em criança acreditava ter de ser bem-educada e ter boas notas para não levantar ondas em casa, para me sentir «segura».
[Aprendi recentemente que este comportamento tem um nome: agradar. Peter Walker utilizou esta palavra como o quarto «f» (em inglês) na lista de respostas instintivas ao trauma: lutar, fugir, congelar, agradar (fight, flight, freeze, fawn). Descreve quando as crianças aprendem que «a segurança e o apego podem ser obtidos tornando-se prestáveis e servis em relação aos pais». No limite, este comportamento pode tornar-se na síndrome de Estocolmo.]
Desde então, aprendi a dizer não, às vezes com demasiado entusiasmo. Stephen Covey disse que para dizer não — de forma agradável, sorridente e sem remorsos — precisamos de um sim maior a arder em nós. O meu sim ardente tornou-me muito intencional na forma como uso a minha energia e o meu tempo.
Aprendi a dizer não para criar e manter limites e para defender o que acho que é melhor para mim. A vida é demasiado curta para perder tempo com coisas e pessoas que não me trazem amor, crescimento ou paz.
As ações do Tom incomodam-me porque equiparo a manipulação (percebida) a pressão indesejada e chantagem emocional. Quando sinto que alguém me está a dar conversa ou a tentar persuadir-me para comprar ou fazer alguma coisa, ponho as garras de fora. Quando vejo alguém que amo ser persuadido, em benefício de outra pessoa, ativo o meu modo protetor.
As ações do Tom incomodam-me porque me transportam para o tempo em que eu não conseguia dizer não, e ativam os mecanismos que desenvolvi para me proteger.
Pergunto-me a mim própria: estou a manipular outros? E isso está errado?
A manipulação é intrinsecamente má? Se olharmos para a raiz da palavra, que vem de mão e manuseamento, torna-se uma tática que pode ser aplicada para o bem ou para o mal (mesmo que hoje em dia utilizemos a palavra para descrever o controlo desonesto de alguém em proveito próprio).
As mesmas táticas utilizadas pelas empresas para vender comida de plástico às crianças podem ser utilizadas para promover alimentos saudáveis nas cantinas, e em ambas é utilizada uma estratégia de comunicação para fazer passar a mensagem. É uma forma de manipulação quando um formador escolhe um conjunto específico de exercícios para «fazer» com que os participantes de um workshop avancem através de um determinado tópico — de uma forma que é útil tanto para o formador como para os formandos.
Estas táticas tornam-se negativas quando prejudicam o bem-estar de alguém, e os budistas diriam que trazem sofrimento quando a intenção é má, e não apenas o resultado. É particularmente mau quando são utilizadas com alguém que não é capaz de dizer não, como quando existe um desequilíbrio de poder.
Durante dois tristes meses da minha vida, acabada de sair da faculdade, tentei vender aspiradores. Não me vou esquecer de ter visto um colega a tentar convencer uma mulher a comprar um — uma mulher que vivia numa casa muito pequena e não precisava daquela máquina cara, uma mulher que já tinha dívidas de outro aspirador a pesar-lhe. Naquele momento, percebi porque é que as vendas não eram para mim.
E a manipulação do Tom? As intenções dele são más? Os outros rapazes sofrem por causa do que ele fez? Ou é apenas errado o fato de ele estar a fingir sentir algo que não sente realmente e a enganar os rapazes para fazerem o trabalho por ele?
E quando somos simpáticos para a pessoa do serviço de apoio ao cliente porque sabemos que é a melhor forma de obter o que queremos? E todas aquelas pequenas coisas que dizemos e fazemos para viver tranquilamente em sociedade?
Há momentos em que sinto algo e ajo como se estivesse a sentir algo diferente, mais «apropriado» para a situação, como sorrir para alguém quando estou neura, só porque é a coisa educada a fazer.
Há alturas em que tento controlar um resultado dizendo o que tenho a dizer de forma a conseguir o que quero. E mesmo sabendo que tento fazê-lo com transparência, respeito e consideração pelos outros, há alturas em que esta «consideração» é uma linha, um compromisso, entre as minhas necessidades e as necessidades da outra pessoa.
As ações do Tom incomodam-me porque me revejo nelas e porque me fazem refletir sobre a minha posição na escala do bem e do mal.
Estarei a fazê-lo a mim própria?
Este é um tema na minha vida: aperceber-me da manipulação, nos outros e em mim, e como reajo a ela, e aperceber-me de como lido com os limites, e a forma como dou (ou não) prioridade às minhas necessidades.
Ultimamente, tenho descoberto mais um nível: a forma como me manipulo a mim própria, a forma como finjo que está tudo bem e deixo as emoções desconfortáveis de lado, ou as abafo com comida, ou com uma tarde entorpecida em frente a um ecrã.
Fingir (até conseguir), ou agir como se, pode ser uma forma de regular as emoções. Podemos expirar profundamente para tentar acalmar a ansiedade, agir como se fôssemos corajosos quando estamos a fazer algo assustador, ou até encontrar um propósito mais elevado para aliviar o peso de uma situação difícil. Também é útil em jogos de póquer.
Mas pôr os nossos sentimentos de lado, uma e outra vez, pode ser uma forma de dizer que eles não são adequados ou que aquilo que somos, aqui e agora, não é suficiente. O que tenho ouvido ultimamente, de diferentes fontes (como se o universo me estivesse a tentar dizer-me alguma coisa), é que a forma de o fazer é aprender a ficar no desconforto, pouco a pouco, e a descobrir o que posso aprender com ele.
Estou a aprender a fazer isto com a culpa que ainda sinto quando digo não, ou quando dou prioridade às minhas necessidades. Tento prestar-lhe atenção, reconhecer a sua origem e aceitá-la — talvez seja uma forma de calibrar as minhas escolhas.
*
A cena da pintura da vedação é uma excelente forma de mostrar a personalidade de Tom Sawyer, um ótimo exemplo de «mostrar, não dizer». As escolhas dele refletem a sua personagem na história de Mark Twain, e isso é verdade para grande parte (todos?) de nós: as nossas escolhas refletem a forma como crescemos, as experiências que tivemos, as lições que aprendemos e até os nossos genes. Mas se a forma como lidamos com a manipulação é um produto de todas estas coisas, pode também tornar-se o produto de novas experiências e de novas lições aprendidas.
Foi útil ter-me perguntado por que razão me incomodam as ações do Tom Sawyer e por que razão tenho reações tão fortes quando alguém tenta vender-me alguma coisa. Prestar atenção ao que me incomoda nos outros é terapia gratuita, um espelho para a minha alma que me ajuda a perceber onde já consegui chegar, o que continuo a aprender e aquilo a que realmente preciso de prestar atenção.
[Comecei a escrever sobre Tom Sawyer em agosto de 2023 e retomei o texto há cerca de um mês, logo após ter publicado o meu último artigo. Provavelmente deveria ter feito isto na terapia — demorei algum tempo a desenterrar as minhas emoções e a organizar os meus pensamentos sobre o tema.
E os teus? Tens alguma coisa que te incomoda repetidamente nos outros? Tens dificuldade em dizer não? Sentes-te culpado quando dás prioridade às tuas necessidades?
E se sabes como ficar no desconforto das emoções difíceis, em vez de as entorpecer, por favor partilha a tua técnica abaixo. Eu sei que não estou sozinha nisto.
Obrigada pela leitura!]